
Jason Lee e Brian O'Halloran em Mallrats.
Quando comecei a pensar a idéia dessa série de textos, se tratava apenas do meu interesse por Kevin Smith, e da idéia de como ele, tão demonstrativo do que significou o cinema indie americano nos 90, lidaria com ícones tão expressivos dos anos 2000, no caso o Seth Rogen. Isso foi crescendo e resolvi fazer uma série de revisões de obras que eu imagino como a imagem dos anos 90 no cinema americano. Em breve surgirão outros.
A primeira reação é a de notar o que a gente salva dos filmes iniciais, os objetos dessa volta minha. O Balconista, Barrados no Shopping/Mallrats, e Procura-se Amy. Por que são os filmes que se aproximam dessa idéia de um universo jovem, que ele então recupera no Zack and Miri. E justamente é o que sempre me interessou nele, o ato de se colocar como um cronista geracional. E aí podemos colocar que seria uma geração ficticia, que exista apenas em sua mente. Algo que não difere tanto de eu colocar o Judd Apatow como o maior cronista da minha geração – que geração é essa, é a mesma pergunta que me faço sempre que penso na idéia que viria a me ocorrer para chegar nessa conclusão. Por que toda geração existe em torno de várias, e os filmes de Smith me convencem sobre a dele. E eu realmente acredito que ela só faça sentido naquele momento, como realização mesmo, por isso retorno com algum carinho à esta década na qual cresci.
A conclusão mais direta é evidente: o Balconista, que em teoria por vir antes poderia parecer melhor, perde para os outros num simples fato de ser burilado em torno dos principais defeitos do cineasta. É só diálogo e referência. O que há de melhor no filme, e é claro que há algo de bacana, é como ele é bem construído, foi pensando, moldado em torno das locações e da imagem que suas duas personas em cena têm, Brian O’Halloran e Jeff Anderson. Não à toa são imagens recorrentes na obra. Mas a referência, isso tão ligado à obra dele é na verdade apenas parte de sua obra, não o corpo dela. É como se com o tempo restasse apenas isso, o que vemos em Jay and Silent Bob Strikes Back, tempos depois em 2001. Como se ele mesmo não acreditasse nas suas capacidades, ou mesmo não percebesse que houvesse algo de realmente forte no mundo que ele foi capaz de moldar.
A diferença dos outros é que se o preparo excessivo do outro para as questões centrais enchia o saco, literalmente, pelos dialogos calculados, as referências espertas a todo momento, isso tudo é parte do corpo de Mallrats e Procura-se Amy, mas de uma forma bem diferente; aqui os filmes não contam uma história em torno disso. Lá o filme era um idílio entre dois personagens, onde eles divagavam. Era a vida que não andava, e a vida nesse universo – o construído por Smith, e o mundo cultural ao qual ele consome. Em Procura-se Amy, e também um pouco em Mallrats, não há mais a necessidade de fazê-lo surgir, o universo já existe, já sobrevive. São filmes independentes, que narram questões maiores, crônicas juvenis diferentes – Mallrats com seus dois protagonistas tentando reaver suas mulheres e seu mundo (o shopping), Procura-se Amy com o triangulo amoroso entre Holden, Banky e Alyssa, mas principalmente o duelo de um jovem careta num mundo pós-moderno contra o seu sentimento por um ser desse mundo. O Balconista era sim um filme sobre Dante, e a vida emperrada, mas dava bem mais espaço para o resto, o lado bobão cult. Mallrats é um filme sobre aquelas ações, Procura-se Amy vai também nesse caminho. Se o mundo e encenação de Smith não vivem sem referências, elas ao menos são um detalhe.
E não há porque defender o excesso de conceito em torno dos filmes, porque se é por isso o Dogma, o pior de longe, deveria ser o melhor, é o projeto da vida dele. E nem por isso seus filmes eram mal construídos visualmente, o que me leva a crer que ele sempre subestimou esse talento. Zack and Miri termina com um plano extremamente bem construído, mas é quase inteiro filmado com preenchimento correto, nunca filmando mal, mas nunca tentando solucionar nada assim. Mallrats deve ser o melhor, enquanto Brodie fala alguma bobagem logo na introdução, algo divertido mas inexpressivo, ele já constrói todo o filme, seu ambiente, sua lógica, com uma série de imagens do shopping. Aquilo é imaginar visualmente o filme, e esse é de longe o filme onde até as referências funcionam melhor, porque fazem parte de um código que responde diretamente a realização do filme. O Jay e Silent Bob são literalmente super-heróis, e voltam a humanidade no filme seguinte, até zombando das coisas que viveram no shopping. É o filme que capta de forma mais tranqüila o estar vivo e ser jovem no meio dos anos 90 em New Jersey. Segundo, é claro, o Smith.
O Procura-se Amy é diferente, pretende-se o filme adulto, e até é. Lida com a questão central da obra dele, que seria a idéia de uma criação careta e católica, como a dele, lidando com esse universo que ele seria o primeiro a dizer que é incrivel, de infinitas coisas. Mas é um filme que me parece totalmente embolado a partir do momento em que a crise deveria entrar em cena, e por isso é uma grande decepção. Depois que Holden e Alyssa ficam juntos, as soluções são as piores, o Banky deixa de ser um personagem complexo, vivido pelo melhor ator de seus filmes o Jason Lee, e vira apenas o elemento que quer implodir a relação. O drama de Holden não é descobrir aquelas coisas que descobre, mas sim o fato delas existirem. Transformar o Banky no agente disso é fácil, fácil de um jeito que o filme não era até ali. Mas é um filme bem interessante, bem menos bobo do que se espera dele. Porque se eu defendo o Mallrats, é porque acho um avanço e um filme realmente bem legal, um bom filme, mas não por isso um filme menos bobo alegre. Ele existe como uma aventura, uma brincadeira de se colocar personagens que poderiam ser amigos dele numa trama cheia de ação no cotidiano. Por isso vale perdoar até as piadas mais idiotas, que não estão aqui no Procura-se Amy.
Um momento eu acho mesmo foda: o Banky dá uma risadinha olhando para o desespero do Holden ao ver ela beijar uma mulher, mas é um segundo e ele fecha a cara e fita a câmera, se situando no local. É um instante que acho animal no filme.
E então chegamos no Zack and Miri. Se vemos logo que o universo do Seth Rogen dá uma misturada nesse mundo smithiano, é também porque ele já não mais existia. Ele sempre intencionou o fim desse universo lá no Jay & Silent Bob Strikes Back, inclusive o Balconista 2 parece um zumbi quanto a isso, embora não ache um filme ruim, e Jeff Anderson e Jason Mewes interpretando personagens que não são Randall e Jay é a obvia prova. E não é coincidência que ele tenha sido enterrado logo na virada do milênio: aquele mundo não tinha mais tanto sentido como um dia ele fez, aqueles personagens entrariam em outro estágio. Seria legal ver o Smith filmar isso, mas a opção dele foi patinar. Tentou de tudo, e caiu aqui, num novo filme jovem. Lidando com o que? A caretice de um cara que se julga não-careta, mas que no aperto faz a cena de sexo comportada e mais careta do mundo com a mulher que ama, enquanto faz do resto do mundo idealizado de certa forma, o contrário disso… O Zack de Seth Rogen não é só falastrão como Brodie ou caretasso como Holden, ele é um protagonista dessa loucura também, como Alyssa.
É um filme sem liga, mas em alguns momentos muito bom, raríssimos. Acho que ele tem um elemento legal acima de tudo, que é os dois atores centrais além de ótimos sozinhos, terem uma química acima do comum. E isso é o bastante pra tornar ele palatável, mesmo nos momentos em que ameaça ficar um saco. Acho bem legal o fato dele colocar o nú frontal dos dois sexos num filmes sobre a realização da pornografia, mas acho que diz muito sobre os homens o fato do masculino não surgir com relação sexual encenada pelos personagens e sim no cotidiano mesmo, na cena final. Outro fato que ressurge é a construção do ambiente em que os personagens vivem, rica em detalhes, um ponto alto recorrente. E a questão do novo século? Os jovens de agora já parecem mais sem alma, apenas dispostos a tirar um sarro do mundo, como eles quando vão a escola na reunião dos formandos, a não ser quando finalmente se percebem apaixonados, e enfim voltam a existirem, e a realização de ficarem juntos gera um plano final cheio de vida. Há um desinteresse pelo existir deles, o individual, a questão de estarem todos fazendo parte de um ambiente, do mesmo mundo, os personagens aqui só existem para agirem, que difere dos filmes mais velhos, e desinteressa o filme, mesmo que seja mais bem realizado que alguns dos outros.
E no fim, uma auto-critica que o blog me ajuda a fazer: por que tanto interesse, carinho e paciência com um universo criado por um realizador que eu nem se quer gosto?
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