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Disco épico
O encontro apenas como encontro não basta, e sim a fagulha que ele gera. A troca de energias, seja na similaridade, seja na total diferença. Um álbum ao vivo parte do registro da intensidade dessa exposição de uma seleção de canções para um público, o autor executando sem a segurança e estabilidade do estúdio e querendo ou não, a reação do próprio público. Reação essa que na maioria das vezes não me agrada, música foi e sempre será algo introspectivo para mim, talhado, esculpido, e não visceral. Tirando essa particularidade, e como tudo possui uma exceção, um encontro épico que me parece merecer uma reflexão mais aprofundada é o disco gravado após a série de shows que Chico Buarque e Maria Bethânia fizeram no Canecão, em 1975. Reflexão pessoal, e não crítica, de dimensionar o registro desse disco e o que aconteceu naquela noite.
A intensidade
O compositor que prefere não cantar contra a cantora que não compõe, mas morre no palco. A sutileza contra a força, o onírico contra o carnal, o aprumado contra o voraz, o homem e seu eu-feminino contra a mulher e seu eu-masculino, a dualidade, a energia que transpassa, o apolíneo e o dionisíaco. Uma absorção do oposto, uma entrega sem pudor, um palco que incendeia. Não uma parceria simples ou um encontro de acaso, Chico Buarque e Maria Bethânia naqueles shows foram um só, principalmente por serem opostos. Os indícios das energias, das músicas escolhidas e dos papéis que se invertem, se decalcam e simplesmente desaparecem me põe a repensar esse disco. A sensação da nudez de ambos, de Chico nunca ter sido tão Chico e ao mesmo tempo tão aberto para algo diferente, e Bethânia, nunca tão voraz simplesmente porque frente a frente com Chico sua voracidade aumenta sem limites. Papéis marcados, papéis que não existem, nudez pura. O bom moço tímido e genial contra a cantora lasciva e frenética, a Abelha-Rainha. Não à toa foram os últimos shows de “cadeira” que Chico Buarque fez encarando uma temporada. O desgaste é palpável a cada nota que se ouve. O momento passa, o registro fica. Sorte de quem escuta. E ainda mais de quem esteve lá.
O espetáculo
Tudo se inicia com Chico cantando “Olé, Olá”. Como se saudando seu público, Chico inicia sua exposição com o que ele é. A canção dos tempos de FAU, a inocência do compositor que não sabia que era compositor, e do homem que era menino. Chico não apenas expõe, ali Chico é. Até que entra Bethânia. A intensidade de sua voz já marca o que vem por ai, ela é o trem que passa e não existe mais volta. Sua voz é contida, porque tudo tem seu tempo. E o tempo ia parar pra ouvir. O pedido de espera porque algo maior está por vir.
(Chico) Não chore ainda não, que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
É um samba tão imenso que eu às vezes penso
Que o próprio tempo vai parar pra ouvir
Após, Bethânia se apresenta com “Sonho Impossível”. Mas ao contrário de Chico que se faz notar, Bethânia se faz sentir. A fagulha da explosão que vem por aí, a voz que a cada compasso ganha força. E o principal, marca que ali naquele momento o tempo não é tempo, a ditadura não é ditadura, e o ser humano não precisa agradecer por ter a chance de sentir. Que morram ali, mas viver é maior que isso. O palco como a vida, o instante que é vida. A certeza que viver é confrontar, e morrer por aquilo se precisar.
(Bethânia) E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
Depois, o primeiro olho no olho. O apego ao instante e seu caráter passageiro, não bom ou ruim, apenas imutável na sua efemeridade. O se olhar polido, respeitoso. Paulinho da Viola e sua composição genial “Sinal Fechado”. A interpretação cordial de quem irá em seguida morrer de amores no palco. O saber que aqueles momentos nunca serão tão completos quanto deveriam.
(Chico) – Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas…
(Bethânia) – Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
Após, “Sem Fantasia”. Chico e Bethânia viram amantes, Bethânia clama pela entrega do “menino”, Chico que se entrega independente de tudo. Aqui acontece o ápice de ambos, e até o fim nenhum será mais o mesmo. Bethânia clama por seu menino vadio, clama pela entrega, entrega calcada na própria inocência. Mas o principal é clamar pelo corpo. Ela quer o corpo sem restrições. Chico se entrega, mas sabendo da dor que é fazer isso, do ir contra tudo o que se achou ser, de tudo que viveu. Os dois terminam cantando juntos, intensamente como dois amantes que são.
(Bethânia) Vou te envolver nos cabelos
Vem perde-te em meus braços
Pelo amor de Deus
…
(Chico) Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
…
(Chico) E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus
A mulher que nunca terá o que quer e precisa porque nada será tão intenso quanto ela em “Sem Açúcar”. Que morre de amores, que apanha se precisar, mas estremece de amor. O amor sem justificativa, o amor sem razão. Bethânia marca bem que naquele momento morre pelo seu homem sem pestanejar.
(Bethânia) Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo
…
(Bethânia) A minha paixão é piada, sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado e meu corpo é uma fogueira
Depois, Chico se posiciona como a “mulher da relação” naquele instante em “Com açúcar, com afeto”, ao usar seu eu-feminino. A inversão dos papéis, a fragilidade masculina de quem não se importa com o que se deve fazer, se importa com sentir. O alheio ao pré-definido, o igual para igual. O amar sem se importar com o que deveria ser, e sim com o que é.
(Chico) E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado
Como vou me aborrecer? Qual o quê!
Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você.
A lembrança de um amor que passou, ou que vai passar. Os indícios, a serenidade do voraz que também pode ser pacífico. Bethânia vivencia seu eu-masculino em “Camisola do dia”, se põe introspectiva, como um amante que fala com si próprio sobre o amor que passou.
(Bethânia) A camisola que um dia
Guardou a minha alegria
Desbotou, perdeu a cor
Abandonada no leito
Em “Notícia de Jornal”, o amor que só importa aos dois, o mundo não se interessa. O momento que, por mais que seja compartilhado, é egoísta. Egoísta porque nenhum da platéia sente mais do que os dois sentem, o momento do artista e seu palco. Amor que vai acabar e não interessa a mais ninguém. A simploriedade do amar, e do acabar.
(Chico) Ninguém notou
Ninguém morou na dor que era o seu mal
A dor da gente não sai no jornal.
Em “Gota d’água”, Chico e a fragilidade de alguém que pede para ficar em paz. O quanto um amor consome até as vísceras, e como vivê-lo é viver e morrer.
(Chico) Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor…
Se o ápice emocional foi “Sem Fantasia”, o ápice intelectual, moral e político é “Tanto Mar”. Se a música em si já é um atestado contra todo o cenário brasileiro de 1975, naquele dia a censura não permitiu a utilização da letra. A música só pôde ser relançada com uma versão reescrita. O que era o podar virou energizar. As palavras não proferidas ganham mais forças ainda na intensidade das palmas, na calorosa revolta, no inconformismo imensurável. A cada palma, um renascimento. Impossível me furtar em replicar a letra original da música, magistral, enquanto as palmas ecoam até hoje.
(Chico) Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Em “Foi Assim”, as indagações da mulher que sofre e nunca consegue amar. Ama, mas nunca é correspondida, ou quando consegue a reciprocidade, nunca sente a firmeza da incondicionalidade. A vontade de berrar, o não agüentar, o querer amar.
(Bethânia) Se todos no mundo encontram seu par
Porque só eu vivo trocando?
Se deixo de alguém
Por falta de carinho
Por brigas e outras coisas mais
Quem aparece no meu caminho
Tem os defeitos iguais
Em “Flor da idade”, a inocência da descoberta. O amor puro e descompromissado. O descobrir o amor sem amarguras, sem ranços, sem traumas, sem expectativas além do frio na espinha. Chico encarna o pueril.
(Chico) Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
…
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor
Em “Bem Querer”, a obsessão. O morrer e matar pela pessoa amada por ela ser sua, só sua. Aqui ambos compartilham a loucura ao cantar, Chico e Bethânia, mas ambos com postura serena. Bem querer na insanidade, na possessão.
(Chico) (Bethânia) E quando o seu bem querer dormir
Tome conta que ele sonhe em paz
Como alguém que lhe apagasse a luz
Vedasse a porta e abrisse o gás
O sofrer continua em “Cobras e Lagartos”. O amor que não se completa, a vontade de fugir.
(Bethânia) Me devolva aos meus travesseiros
E perco o meu sono
Que coisa ruim
Eu só sei que a imagem dele
Pregada na insônia
Não desgruda de mim
A inclusão de “Gita”, composição de Raul Seixas e Paulo Coelho, com interpretação de Bethânia me soa como um disparate. Faz sentido, dado que viver não é esperar coerência. Um atestado da existência do inferno, de que nem tudo é perfeito. A discrepância dessa música em comparação às demais é gritante. Vejo Chico claramente torcendo o nariz, e Bethânia sentindo um leve desarranjo intestinal. Mas aqui, o pessoal fala ainda mais alto que nas demais interpretações.
E em seguida, o fim. A despedida festiva dos amantes que se amam, mas não se conhecem. Que viveram, mas não sabem o que acontecerá. O samba que vem lhes buscar, e traz a alegria do incerto. O infantil, o verdadeiro. Em “Quem Te Viu, Quem Te Vê” a troça com a mulher que não é mais do samba, o sarro com quem não sabe viver algo como aquele momento. O samba de rua contra o samba de galeria. O viver na simplicidade, a alegria porque não do próprio pobre, que nada tem, mas que não precisa de nada.
(Coro) Quem não a conhece não pode mais ver pra crer
Quem jamais esquece não pode reconhecer
…
(Chico) (Bethânia) Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia
Em “Vai Levando”, a brasilidade do momento. O não ter opção a não ser seguir em frente, lutando, brigando e quando precisar, fingindo.
(Chico) (Bethânia) Mesmo com o nada feito, com a sala escura
Com um nó no peito, com a cara dura
Não tem mais jeito, a gente não tem cura
E com tristeza, o desfecho com “Noite dos Mascarados“. O não ter certeza de nada do que aconteceu, a utopia carnavalesca, o voltar para o mundo apenas amanhã, hoje não. Hoje eles são apenas um, são amantes, são vivos, morrem de amor. E que o amanhã nunca chegue, o que importa é o hoje.
(Chico) (Bethânia) Amanhã tudo volta ao normal
Deixa a festa acabar, deixa o barco correr, deixa o dia raiar
Que hoje eu sou da maneira que você me quer
O que você pedir eu lhe dou
Seja você quem for, seja o que Deus quiser
Músicas do Disco
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